domingo, 18 de julho de 2021

Estranho Amor

A vida vai trazendo coisas. Na verdade, não é bem a vida trazendo.Por estarmos vivos, situações surgem, muitas vezes, por nossas próprias escolhas. Nossas escolhas tem base no que pensamos,acreditamos, porque temos crenças.Escolhas pessoais. Acontecimentos, no meio, onde possamos estar, também promovem condições diversas. O meio nos forma ou ajuda a formar, porque muitas vezes estamos abertos e ele nos envolve. Mas, não é um caso general. Nem sempre acontece assim. Conheço pessoas criadas em certos meios que escolheram caminhos inesperados, muito estranhos a sua criação. Desta observação, em vários casos, conclui que,embora o meio seja imperativo, em muitos casos não é. O meio nem sempre determina a pessoa ou suas escolhas, mesmo sendo um fator de influência. Sempre que me refiro a este assunto eu lembro de uma família, do bairro em que nasci. A família de Argemiro, o Reizinho. Uma família monoparental, frequentemente. O pai não vivia com eles. Como a gente,criança presta atenção nas coisas, logo eu prestei atenção naquela família, não somente porque chamavam a atenção e pelos comentários. A família de Reizinho era muito bonita. Ele era o caçula e tinha duas irmãs maiores que ele. Maria da Conceição e Almerinda.Duas garotas de mais ou menos minha idade, muito bonitas. Argemiro era muito lindo também. Bronzeado do sol, com os cabelos louros , olhos claros. Maria da Conceição era a segunda filha, alva, com os olhos bem esticados, cabelos bem lisos, castanho escuro, olhos escuros. Almerinda, era a mais velha. Robusta, rosto largo também alva, com olhos de chinesa, sorriso franco. Uma moça bem compenetrada diariamente subia a rua para ir ao colégio, com seu uniforme impecável. A mãe deles era uma mulher de rosto resignado, a pele bronzeada um sorriso triste e tímido. Um rosto gasto pela lida aí Lavava, muito em casa.

Quando eu fui estudar na Escola da SAER, observei a mãe de Reizinho entre tantas lavadeiras na grande lavanderia que ficava ao lado da Escola.  a lavanderia não era acessível a estudantes. Havia uma  grande e alta parede entre a escola e o ambiente. Mas, andando, por um caminho  paralelo a parede, chegava-se a uma passagem, estreita para lá.E eu fiz este caminho com algumas coleguinhas e quando o barulho das torneiras aberta, lençóis  alvejados por todos os quaradores e cordas, um cheiro do sabão em pó recém introduzido no mercado, invandia nossas narinas e ouvíamos um alerta: por favor crianças, não pisem em nossas roupas e certo frescor nos alcançou, naquela manhã clara de sol, outonal. Estávamos dentro do reino das águas claras das lavadeiras do bairro. Entre elas vi a mãe de Reizinho.Ela me olhou e no seu olhar bêbado vi a expressão: a neta de D. Amélia.  Eu não sei se ela bebia,talvez bebesse. Muitas mulheres no bairro se embriagavam  sozinhas ou com seus maridos.

Morava no mesmo bairro destas, embora não na mesma rua, sabia onde era a concentração. Na minha casa não se bebia fora de hora. Bebíamos, Vinho do Porto, aos domingo e em datas especiais como a Páscoa, Natal. No São João havia licores. Sempre muito de genipapo, de cravo, laranja, etc. Vovó fazia e se comprava esta bebida de encomenda. Era barata. Eu não gostava de licor, naquele tempo, não gostava de nenhuma bebida alcoólica. Quem bebia mais um pouco da conta era papai. Mas, não estas; ele saia para a rua e por lá bebia. Mas, nunca vi papai bêbado, na minha infância. Não lembro disto, neste tempo. Mas, ele já bebia e fumava.Eu sabia. Não fumava dentro de casa, vovó não queria. Papai tinha hábitos de tabagismo e alcoolismo. Mas, não causava nenhum problema na sua casa. Ele era ainda viúvo e muito jovem. Eu era já seu pequeno e importante fardo. Certamente que era. Penso assim hoje.

Mas, vamos retornar para a lavanderia e para a mãe de Argemiro, o Reizinho. Aquela mulher magra , com um rosto agradável, mas sofrido, com um ar que dava pena, uma mulher sofredora."Lourdinha , coitada. Mas, ela é trabalhadeira".Estas palavras sempre repetidas nas passagens desta mulher por nossa via, me fez olhá-la com piedade. Eu não gostava de pessoas que tinham hábitos diferentes dos da minha casa, nem de pessoas que eu já fazia uma análise do status. Ninguém me ensinara isto. Eu percebia e agia conforme eu sentia...Vendo o toco do fumo preso nos lábios roxos, com pontas de saliva, daquela mulher acaboclada, me causava um certo asco. Eu disfarçava, mas, estava ali fazendo análise, para menos, eu não prestava. Eu era uma menina tola. Ali estava uma mulher elogiada por minha avó e meus familiares, mas, eu não enxergava nada nela que fosse elogiável. 

Podiam ser até virtuosas, aquele lugar não era adequado para mim. Dei meia volta e  nunca mais, enquanto eu estudei naquela escola de politicagem, de provincia eu não  voltei mais aquele lugar tão bonito, onde mulheres decentes, embora pobres, faziam um trabalho digno. Lavavam roupa, para sustentarem suas famílias. Gostaria de expressar amor para aquelas mães, viradeiras, ganhadeiras, em uma lavanderia criada para sanear suas casa e suas vidas com seu trabalho. Tudo isto não é perceptível de forma visceral por uma criança. Como uma criança pode entender estas coisas? Como aquele trabalho era importante. A mãe de Reizinho fazia parte daquele grupo de mulheres. Criava seus filhos e possibilitava beleza as suas duas filhas. Ela vivia escornada, nem parecia mãe daquelas moças. Suas filhas eram moças estudiosas e decentes. Formaram-se todas, casaram-se bem.

 Por amor ela se acabava. Por amor e honra ela estava na barrela. Um estranho amor que só uma mãe pode ter. Uma manifestação de amor tão divino, que para muitos pode parecer estranho. Foi verificada e com o passar do tempo percebida por mim. Hoje entendo a mim, entendo aquela família. Acho tudo tão válido.

Graça Nunes.