sábado, 16 de maio de 2020

Lembrando a memória.

Um grande amigo e muito querido, já morto, quando ficava aborrecido com alguém e comigo, principalmente dizia: "muito feia(o) você". Eu sabia e continuo sabendo o que queria dizer com isto. Eu o amava muito e continuo amando sua memória, ele era uma pessoa muito linda! Sempre lembro de nossas risadas e conversas em momentos de grande euforia e bom humor de minha parte, lembro muito também de quando almoçávamos juntos, como ele me admirava e tinha interesse no que eu dizia. Poliglota. Me corrigia a pronuncia do francês e inglês(não falo nenhum dos dois). Lembro, especialmente e gargalho, quando na sala de uma colega, todos cantavam e nós dançávamos.
Confesso, porque sou uma pessoa chata, que quando ele ficava recitando poesias o tempo todo, de forma eloquente e parecia não ligar para o que se dizia; eu me irritava.O achava doente e louco. Era meu colega de trabalho.Acabou. Passou rapidamente.
Quando ele adoecera, eu não soube logo, sabia que ele estava de licença para descansar, estava com problemas de coluna. Ninguém queria me dizer a verdade. Todos os dias procurava saber saber se ele estava bem. "Está melhor". Nunca tinha ido a sua casa e queria vê-lo. Não sabia o endereço e ninguém quis me levar na casa dele.Ele estava em um apartamento novo, por pouco tempo seu pai estivera morando com ele e depois falecera. Dai, ele ter prometido uma hora boa, em sua nova casa com os amigos e depois ter cancelado por causa da doença de seu pai...aguardávamos o momento, para ir   degustar seus vinhos, ele tinha muito bom gosto. Nunca pensamos que partiria assim, tão rapidamente. Bom, depois que adoecera, eu só o vi no hospital. Ele já estava internado.Quando soube, que ele já estava internado, eu fui imediatamente vê-lo. Ele já havia saído da UTI. 
 Tudo foi acontecendo em grande velocidade.. Nesse ínterim me informaram tudo e eu fiquei sem chão. Senti uma grande revolta, mas o que eu tinha de fazer, por que éramos amigos, por sua gentileza e cordialidade, por sua delicadeza e respeito era estar perto dele em um momento tão ruim...Fui com o coração dilacerado  ao hospital, fui sozinha; intimamente me preparando, para um quadro de miséria. Na minha mente a sua cabeça grisalha, sua testa morena, seu corpo já todo abatido enrolado em lençóis alvos hospitalares, internado.... Imaginava  uma cena triste. Mas, ele estava bem assistido. Tinha um plano de saúde espetacular, cobria todos os seus tratamentos que estavam sendo caríssimos..Estas informações não adiantavam nada para mim. Doença é algo desagradável em qualquer condição e ele não era mais criança. Conhecia  o hospital, uma prima minha havia estado lá e havia morrido; infelizmente o caso dela era muito grave, me disseram,  sem jeito..... 
Cheguei ao hospital, localizado em uma "zona nobre" de Salvador, Bahia, Brasil; localizei os aposentos dele e  ao me ver, ele deitado no leito, sorriu e ficou muito alegre, eu também. Não estava derrotado, parecia saudável, talvez eu o achasse assim, porque ele demonstrou uma grande alegria em ver-me. Havia uma senhora com ele, sua parenta .Ele não se casara. Não quisera casar-se.Embora percebesse o motivo, pensava que era algo dele, só dele e não me dizia respeito. Nunca procurei saber de sua sexualidade. Isto não determinava nada na nossa relação. Éramos amigos; só isto. Na verdade ele tinha candura por mim, por conhecer minha pessoa. Ele me queria bem. Eu sentia isto em teu olhar, doce e fraterno. Um certo dia,  ele nos mostrou uma foto recente, tirada no dia  de comemoração de seu aniversário.Na foto, ele estava com um rapaz mais jovem que ele, na orla da cidade e devia haver uma terceira pessoa que os fotografou....
Bem, quando cheguei no hospital, ele estava sorrindo e animado. Deitado, sendo assistido.Ele me animou e eu  comecei a sorrir com ele. Depois ele me disse."Acho que não vou mais ficar bom, tenho câncer". Eu já havia notado protuberâncias  em sua testa, em seus braços e ele apontava para elas e dizia:" é a doença, ela já está espalhada e eu não tenho muita chance..." eu não sabia se gritava, se ria ou se chorava. O grito seria para jogar a dor para fora, o riso por causa de seu auto ultraje e o olhar vivo, sério, ao falar comigo, algo costumeiro, dizer a verdade. O choro seria por ele está dizendo que iria morrer. Meu Deus. Cheguei perto e disse-lhe: você vai ficar bom...
Ele notou minha aflição e me disse:"fica assim não, você sabe; é o caminho de todo mundo, cedo ou tarde, cada um na sua hora ou em uma hora qualquer, vai morrer". Segurei a mão dele e silenciei. Silenciei diante de sua grande força racional. Fiquei um tempo no seu apartamento de hospital.... Chegaram mais familiares, sua sobrinha, mostrando-lhe um brinco, dizendo que custara  quinhentos reais, muito mais que o salário mínimo, na época. ... Achei que ele estava bem acompanhado, resolvi deixá-lo, sem ligar para mais detalhes....Nada mais a fazer Ele, parecia estar  de bem com a partida de seu pai, ele já  havia aceitado. Seu pai havia partido um pouco mais de ano. Ele sofrera muito com isto....Resolvi sair dali. Estava me sentido algo excedente....sai, sai do hospital e ganhei a rua. Um tráfego intenso, muita gente voltando para casa, horário de pico. Engarrafamento....A vida era aquela. A vida é esta e ele estava ciente de que não mais estaria em situações como é a vida que se vive....Fiquei de voltar.
Não voltei imediatamente nos dias seguintes. Dias depois a notícia é que tinha retornado para UTI. Eu havia perdido meu pai naquele ano, perdi também uma prima amiga de infância e perdi também este amigo espontâneo. Alvaro.Alvinho....
Graça Nunes. 

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